terça-feira, 24 de maio de 2011

Queima de arquivo

Publicado em 3/5/2011


Todos os dias ficamos estarrecidos com cenas de violência contra pessoas, países, culturas, e ecossistemas. Há quem diga que nossa sociedade está doente. Mas, além dos fatos conhecidos e monitorados, há mortes que não são computadas nestes indicadores de violência, embora estejam intrinsecamente relacionadas ao nosso modo de vida.

Trata-se da morte de neurônios, de conexões sinápticas. Vêm se evidenciando os casos de aceleração do processo de doenças que causam degeneração e morte do cérebro das pessoas, produzindo uma incapacidade de pensar, sentir, criar e agir ao longo da vida. Pesquisas recentes vêm demonstrando o quanto este fenômeno vem ocorrendo cada vez mais cedo, vinculado à escolaridade, ao tipo de ocupação, à qualidade das relações humanas, e a um propósito na vida. É inevitável traçar um paralelo entre o estado do mundo e o estado do nosso cérebro. A cura de um se dá com a cura do outro, garantindo a sustentabilidade de ambos.

Muita gente tem medo de envelhecer e ficar caduco, perder a memória, não compreender bem o que se passa, nem se comunicar direito sobre o que quer dizer. Mas caduquice vem deixando de ser sinônimo de velhice, e tem nome técnico. Caduquice é demência. Só de ouvir esta palavra dá medo, popularmente associada à loucura. Mas demência é outra coisa. É uma síndrome, um conjunto de sintomas persistentes e progressivos que passam pela perda de memória, deficiências cognitivas, alterações comportamentais, que interferem nas atividades rotineiras das pessoas. Até recentemente era algo associado à velhice, mas estudos vêm demonstrando o quanto essa síndrome vem se manifestando entre pessoas mais jovens.

Em uma pesquisa no Ambulatório de Demência do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, cerca de 30% dos pacientes diagnosticados têm entre 20 e 50 anos. O que será que estamos fazendo para intensificar mais cedo o processo de destruição do nosso cérebro?

Há causas vasculares, produzidas por traumatismo craniano decorrentes dos milhares de acidentes, principalmente no trânsito, ou pelo que popularmente chamamos de derrame. As outras causas são desconhecidas. Mas já se sabe o que acontece no cérebro, e como retardar o processo. Uma das mais conhecidas doenças deste tipo é o Alzheimer.

As demências resultam do acúmulo de uma determinada proteína dentro ou fora do neurônio, que acaba por matá-lo. É como se fosse uma sujeira que o corpo não consegue eliminar. Dependendo da parte do cérebro onde esta sujeira se acumula, e do tipo de neurônios que morrem, ocorrem diferentes sintomas, sempre envolvendo progressivas perdas significativas de memória, somadas ao comprometimento de mais alguma função do cérebro.
Instalado o processo, ele é irreversível, ou seja, não se conhece a cura. E aí é só uma questão de cálculo matemático: quanto maior a densidade de conexões sinápticas desenvolvidas ao longo da vida, maior será o tempo necessário para a doença destruí-las. Ou seja, cérebros bem exercitados se tornam mais saudáveis e resistentes à evolução da doença e à manifestação dos sintomas: onde tem atividade cerebral, proteína invasora não entra!

Há portanto uma intensa relação entre a atividade cognitiva da pessoa, decorrente de sua trajetória de vida, e o avanço do processo de destruição dos neurônios causados pela doença.

Indivíduos bem preparados intelectualmente contam com um maior número de estratégias para resolver um problema, seu repertório é amplo: se não se lembra de uma palavra, porque aquela rede neural está comprometida, pode valer-se de outra. Já aquele que aprendeu pouco, armazenou pouco, e pouco ativou suas conexões sinápticas, se não se lembrar de uma palavra em função de problemas de degeneração do cérebro, não terá outro termo para substituí-la, e deixa de se comunicar.

A educação está diretamente ligada à evolução das demências. No Brasil, é preocupante o número de analfabetos ou analfabetos funcionais, que não tiveram a oportunidade de uma aprendizagem sistematizada. Essas pessoas correm um maior risco de sofrer um rápido avanço de uma demência, pois desenvolveram um menor número de conexões sinápticas.

Porém, além da atividade intelectual, o tipo de atividade profissional também é importante. Entre as pessoas de baixa escolaridade, operários da construção civil e camelôs estão entre os que mais conseguem retardar o avanço dos sintomas, já que por conta de suas atividades desenvolveram uma maior densidade de conexões sinápticas ao longo da vida.

Uma pesquisa realizada em Okinawa no Japão, na Califórnia, e na Sardenha, identificou algumas características comuns a um envelhecimento saudável, livre de demências: uma boa alimentação, não fumar, trabalho significativo, vínculos afetivos intensos e duradouros, engajamento social, e um propósito na vida. Popularmente, chamamos isso de felicidade!

Por alguma razão desconhecida uma proteína se reproduz descontroladamente no cérebro e mata os neurônios. Este processo ocorria exclusivamente em pessoas idosas, e passou a ocorrer também entre os mais jovens. Sabemos que um indivíduo com equilíbrio nas relações consigo mesmo, com os outros, e com o mundo, consegue prevenir e retardar a proliferação dessa proteína e a consequente degeneração do cérebro. E aí surge a pergunta que não quer calar: por que será que este tipo de doença vem se propagando também entre pessoas mais jovens?

Quando as demências se manifestavam exclusivamente entre idosos, isso era visto como “coisa de velho”. Mas à medida que a manifestação dos sintomas passa a ocorrer entre os mais jovens, e conhecendo os fatores que podem retardar o avanço da doença, é possível traçar um paralelo com o modo de vida que estamos impondo às novas gerações.

Além do processo de aprendizagem, da ativação intelectual e profissional que permita a um jovem conseguir um emprego, manter-se ativo e se sustentar, também é preciso alimentar-se bem, manter vínculos afetivos duradouros, estimular um processo de auto-realização que lhe permita assumir um propósito na vida, e promover um engajamento social significativo. E isso tudo não só para evitar a doença de Alzheimer, é para ser feliz mesmo, desde cedo. Família e escola têm uma imensa responsabilidade com os cérebros e a vida das crianças e jovens. Uma vida vazia corresponde a um cérebro também vazio, e frágil.

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Fonte: www.migliori.com.br/artigo

Publicado no Blog da Migliori, no Mercado Ético www.mercadoetico.com.br


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