quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Psicologia dos Povos Históricos


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por Jean Riviere. (1979), Editora Salvat, Rio de Janeiro

Antes de descrever as recíprocas aproximações culturais que o Oriente e o Ocidente fizeram, e ainda fazem, para melhor se conhecerem, é necessário, em Primeiro lugar, compreender a complexa psicologia das grandes raças asiáticas que habitam a Índia, a China e o Japão.
Índia
Uma das características fundamentais do pensamento indiano é a sua tendência para a introspecção. Imediatamente deduz-se daqui uma atitude passiva e habitualmente tímida e tranqüila. A vida interior, contemplativa, ocupou sempre um lugar de primeira ordem entre os indianos, povo eminentemente inclinado à filosofia, à especulação intelectual, às atividades religiosas, à vida cenobítica e monástica, à renúncia, fator que colocam acima de tudo. O pensamento é metafísico, não cientifico, no sentido ocidental do termo; se a Grécia teve uma visão geométrica e concreta do mundo físico, a Índia captou principalmente a visão espiritual e metafísica. Não queremos com isto significar que o indiano seja tecnicamente um medíocre; os investigadores científicos e engenheiros indianos são muito apreciados no Ocidente e podem comparar-se aos melhores homens de ciência da Europa e da América; alguns Prêmios Nobel, inclusive, já recompensaram vários de seus trabalhos laboratoriais. Mas a tendência geral do pensamento indiano é espiritual e religiosa, o que explica a antiguidade e o incalculável valor dos profundos estudos psicológicos dos filósofos e dos investidores da Índia. A concepção do homem é subjetiva. O Eu pessoal perde toda a sua importância, e o seu valor absoluto relativamente a um ele - realidade única, reflexo do divino, encarnado noutro ser humano- é negado por toda a tradição espiritual hindu. A única "Realidade", o atman dos upanishads, reveste-se de formas corporais, e esta consciência passa de corpo em corpo, segundo a lei dos efeitos do ato, o Karma. 

A Índia dá mais importância à "Essência", ao "Absoluto", do que à manifestação material alterável e transitória, do mundo dos fenômenos. Esta manifestação tem um caráter ilusório, a “maya”; daí a teoria que o valor absoluto dos indivíduos é minimizado, e que os acontecimentos históricos ordem importância e convertem-se em repetições de circunstância, numa série indefinida de ciclos que se repetem. O mito substitui facilmente a História, e já se pôde observar que o indiano carece totalmente de sentido histórico; a fixação das grandes datas da antiguidade indiana foi obra de orientalistas ocidentais. Esta tendência provoca um certo repúdio pelo mundo objetivo natural; as percepções intuitivas, obtidas pelas técnicas de meditação, são tão válidas para o indiano como suas percepções sensoriais e têm inclusive maior realidade, porque provêm de esferas superiores da manifestação, mais próximas da "Realidade Suprema". Para o pensamento indiano, a vontade não consiste no acordo entre o conhecimento subjetivo e o conhecimento de natureza objetiva do mundo, como acontece no Ocidente, mas sim e acima de tudo é uma atitude moral, ética, uma forma de viver espiritualmente de acordo com as "Leis Eternas". Com esta abertura para "o alto", o indiano escapa ao desespero existencialista ocidental e aceita a morte com uma calma e uma despreocupação extraordinárias. O hinduismo é uma contemplação, uma realidade do divino, dirigida por técnicas de meditação precisas e transmitida habitualmente por uma iniciação. Considera-se o sábio superior ao santo. Não há salvador, não há ser superior que dê uma doutrina revelada, não há intermediários entre o homem e o "Absoluto", não há Igreja nem clérigos, há apenas profissionais, descendentes da casta dos brâmanes, encarregados dos ritos, que têm como finalidade o cuidado dos templos, residência dos deuses, representações das grandes forças cósmicas divinas. O culto dirige estas forças e as canaliza para o bem dos homens. Ao considerar tudo saturado, ao ver por toda a parte a presença divina, a organização da casta é um reflexo material de uma realidade divina e possui uma base religiosa fundamental. É necessário sublinhar o caráter conservador do pensamento hindu, seu culto dos antepassados, seu extraordinário respeito pela vida, sob todas as formas, manifestação tangível e sagrada do poder divino. Numa palavra, o hindu esforça-se mais por se adaptar à Natureza do que por reconstruí-la.
China
A psicologia chinesa é muito diferente da indiana; pode se resumir a importância do concreto, do particular, na exaltação da antiguidade e dos antepassados, na busca do sentido prático, na conformidade formal e na ausência de sentido metafísico. O chinês vive num mundo de percepção sensorial, de imagens, de símbolos visíveis, de tabelas de concordância. Não se sente em conformidade com idéias abstratas, com os conceitos de caráter geral, as definições aristotélicas. A língua reflete essa busca do concreto e toma corpo na ambigüidade da gramática chinesa, que não só não possui preposições nem conjugações, nem mesmo pronomes relativos, adjetivos, verbos, tempos, formas verbais ou casos. Um mesmo ideograma pode ser substantivo, adjetivo ou verbo. É difícil filosofar em chinês, já que não existe dialética, no sentido ocidental da palavra. O pensamento chinês, que tem um sentido circular no seu desenvolvimento, apresenta um caráter não-lógico, e a intuição domina o raciocínio. A escola religiosa budista Ch'an, em japonês Zen, não tem formas canônicas nem escolásticas, como acontece com as escolas budistas indianas. Todas as explicações filosóficas se baseiam em experiências concretas; a ciência descritiva chinesa é a do particular, do excepcional, do extraordinário que, com sua presença, perturba a ordem natural, Os Anais chineses são catálogos de sucessos. Os chineses veneram o passado, a tradição clássica, a hIstória; Confúcio (-551 a -479) não fez mais do que reunir textos antigos nos Cinco Clássicos, para os converter em modelo permanente da vida social e Individual chinesa. Aprender é imitar e Por isso não procuram uma nova verdade na livre especulação original: transmitem; e a atitude atual dos chineses face a Mao Tsé-tung e aos chefes comunistas corresponde a essa tendência psicológica. Existe uma conformidade exterior para com as formas; a moralidade ocupa-se apenas da proteção e da segurança do indivíduo. O homem deve seguir o grande exemplo da Natureza e conformar-se com as suas leis. A hierarquia das forças naturais reflete-se na hierarquia humana, o que justifica o "Poder Superior", qualquer que ele seja: imperador, general ou indiscutível chefe comunista; daí provém um grande orgulho nacional e racial, um patriotismo obscuro e uma xenofobia latente. Esta tendência explica o aspecto materialista da religião, que não é mais do que um simples comportamento adaptado ao código social. O bem e o mal são relativos, como todo o resto; na China nunca houve uma guerra civil por divergências religiosas, como já aconteceu na Europa, porque o chinês crê que em qualquer religião ou filosofia se encerra sempre algum elemento da verdade.

As três religiões - confucionismo, taoísmo e budismo - unem-se, de fato, numa espécie de sincretismo religioso, de onde a metafísica está totalmente ausente. O ascetismo, o monge budista errante da índia, são desconhecidos; os ascetas taoístas buscam os poderes psíquicos e a imortalidade nos seus retiros. Daí que o budismo hindu sofreu uma profunda transformação antes de se adaptar à mentalidade chinesa.
Japão Muitas são as características psicológicas comuns aos povos japonês e chinês. Existem igualmente enormes diferenças. A influência do pensamento e da cultura chineses foi enorme no Japão; a escrita chinesa penetrou no Japão há 1400 anos e os ideogramas ainda foram utilizados no Japão depois da Revolução de 1868 para explicar as técnicas ocidentais; ao contrário os japoneses falam e compreendem com dificuldade a língua chinesa. O traço psicológico mais característico do japonês é a importância que dá às relações humanas, à posição social, à hierarquia; o espírito crítico não existe e antepõe-se a todo o valor prático das coisas, qualquer que seja a origem. O fenômeno é a única expressão da realidade e o japonês despreza as especulações metafísicas. A sua religião, o shintuísmo, admite a presença da numina, de espíritos, em todas as coisas da Natureza, que se revestem assim de poderes sagrados: daí o amor e o respeito aos rios, às montanhas, às pedras, às árvores, aos jardins... O valor intrínseco da vida reside neste mundo; o amor sexual é natural e não se reprime, como acontece na Índia. O asceticismo budista de tipo hindu é desconhecido no Japão. O confucionismo chinês deu importância às relações sociais humanas, às formas de educação, à linguagem, à família, ao clã, como célula de organização social, às genealogias e ao amor filial do culto dos antepassados. O imperador foi considerado até 1945 como um descendente dos deuses. A ordem social era feudal, patriarcal, e o cristianismo foi perseguido por causa das suas idéias igualitárias antitradicionais. Este culto pela hierarquia explica a devoção pelos superiores, pelos amos, e também as atuais relações dos empregados com as empresas que os contratam, bem como a presença de um cerrado nacionalismo; a tradição nacional admite como princípio que o Japão é o melhor país do mundo. Isto explica o valor que atribuem à força das armas, ao guerreiro, ao seu sacrifício em benefício do clã a que pertence. O samurai japonês equivalia ao ilustrado funcionário chinês. O budismo tomou um caráter militar e o Zen foi uma rude e severa disciplina da formação do guerreiro: o Prof. Nakamura escreve que se enterrava vivo o monge Zen que se mostrava incapaz. A língua japonesa reflete esta busca do concreto e o poeta religioso faz os seus versos inspirando-se em intuições emocionais a que dá expressão nos Tanka (31 sílabas) e nos famosos Haiku (17 sílabas). No entanto, o contacto, embora muito popular, com o mundo dos espíritos faz-se através dos médiuns, do Shinto e dos característicos rituais mágicos budistas.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

“Cisne Negro”: Um Convite à Reflexão

FONTE: Instituto Ânima


Por  Erika Gonçalves Cardim


Psicóloga, Especialista em Psicologia Analítica Junguiana - Unicamp

















“A totalidade não é a perfeição, mas sim o ser completo. Pela assimilação da sombra, o homem como que assume seu corpo, o que traz para o foco da consciência toda a sua esfera animal dos instintos, bem como a psique primitiva ou arcaica, que assim não se deixam mais reprimir por meio de ficções e ilusões. E é justamente isso que faz do homem o problema difícil que ele é”. (Carl G. Jung)


O último filme do diretor Darren Aranofsky - Cisne Negro (Black Swan) veio para cumprir o papel a que se dispôs: ao mesmo tempo que nos induz a um estado de tensão, é capaz de nos fascinar pela beleza ímpar que merecidamente rendeu à obra 5 indicações ao Oscar de 2011 e a incontestável premiação de Natalie Portman como melhor atriz.


Muitos de nós, psicólogos ou não, fomos atraídos às salas de cinema não apenas por reverência à sétima arte e para contemplar mais uma obra prima do cinema. Muito além disso, fomos atraídos pela riqueza simbólica, pelo mergulho em questões mais profundas, pelos caminhos tortuosos pela busca de sentido, seja através da razão ou por meio da insanidade.

“Cisne Negro” chega como uma autêntica aula de Psicologia Analítica Junguiana que merece ser discutido não apenas em breves linhas, tal como tento fazer agora (e correndo o risco de ser sucinta demais). É o tipo de filme que merece discussão mais aprofundada dentro e fora das salas de aula. 

Não tenho a pretensão de analisar detalhadamente a riqueza simbólica contida em “Cisne Negro”: já sabemos que a obra renderia muito mais que um simples artigo. Pensemos nela como um exercício para nossa reflexão, não reduzido a “caçar” aqui e ali os conceitos da Psicologia Analítica fundada por Carl Gustav Jung, mas sua análise como um continuum, uma totalidade altamente simbólica e rica em significados. Fica o convite à reflexão.

O LAGO DOS CISNES

O Lago dos Cisnes é um balé dramático do compositor russo Tchaikovsky. Sua estreia ocorreu no Teatro Bolshoi em Moscou no dia 20 de Fevereiro de 1877. O balé foi encomendado pelo Teatro Bolshoi em 1876 e o compositor começou logo a escrevê-lo.

O filme “Cisne Negro” traz uma nova versão de “O Lago dos Cisnes”. Ao longo da trama, dores físicas e psicológicas das pessoas envolvidas com a apresentação e principalmente da personagem Nina (Natalie Portman), bailarina que se prepara para dançar o Cisne Branco e o Cisne Negro, vão sendo mostradas ao público ao som de Tchaikovsky.

Ao longo do filme se descortinam os mais variados sentimentos humanos: medo do fracasso, inveja, ciúme, vingança, decepção, desespero, carinho, melancolia, tensão, alívio e êxtase.

O CISNE BRANCO E O CISNE NEGRO

Li alguns artigos junguianos sobre o filme que chegavam a estabelecer comparações com a alquimia: o Cisne branco representando a Albedo e o Cisne negro, a Nigredo.

Sabemos que, na alquimia, a primeira fase, ou "nigredo" é o estado escuro, de ignorância e indiferenciação. Durante esta fase há uma autêntica putrefação de antigos padrões habituais e aos poucos surge um novo estado no qual nossa verdadeira natureza se revela: a "albedo". Na albedo há a saída da escuridão das próprias sombras e se entra numa dimnesão da plena objetividade, em que o momento presente surge como a única realidade na qual vivemos.

Parece-me arriscado conceber o Cisne branco como a personificação da albedo: a persona de Nina, encamada pela Cisne branco, está muito distante de um confronto real com a sombra. Está longe de uma representação da albedo. Da mesma forma, o Cisne negro não me parece de todo um aspecto de nigredo um aspecto de ignorância sombria, tal qual a nigredo. É necessário lembrar da polaridade da Sombra, que contém em si não apenas elementos negativos , mas elementos positivos que podem em muito contribuir no processo de Individuação.

No filme, o Cisne branco representa a princesa Odete e coincide com a persona de Nina. Por esse motivo a protagonista apresenta maior facilidade em interpretar o papel: olhar doce, infantil, frágil e ingênuo: uma "princesinha", como o diretor a chama. É necessária inocência, graça, leveza. Nina se encaixa no papel do Cisne branco.

O Cisne negro, por sua vez, representa a feiticeira Odile: é um papel mais difícil, pois coincide com o lado sombrio que Nina nega existir nela mesma: uma mulher sedutora, violenta, maliciosa, malvada. É necessária malícia e sensualidade para desempenhar o papel. Lily (representada por Mila Kunis) é a personificação do Cisne negro.


DAS RELAÇÕES

De fato existe uma amizade conflituosa entre Nina e Lily. Lily desperta o lado sombrio em Nina – veste-se predominantemente de negro, não tem cuidados com a alimentação, faz uso desmedido de drogas, bebidas e cigarro. Representa o lado sombrio de Nina e, consequentemente, representa uma ameaça de cisão do ego.  

A relação de Nina com sua mãe apresenta características favoráveis ao desencadeamento de uma psicose, pois caracteriza-se por uma relação simbiótica e ao mesmo tempo ambivalente. É a mãe cuidadosa e ao mesmo tempo tirana. É possível observar que Nina vive num mundo infantilizado e inocente, apesar dos seus 28 anos de idade. Esta realidade é representada em seu quarto cor de rosa, repleto de bichos de pelúcia. A mãe a veste como se fosse uma criança.


A DANÇA COMO ELEMENTO DE CONTINÊNCIA

A dança foi um elemento fundamental que contribuía para a estabilidade entre o inconsciente e o mundo exterior, fornecendo a Nina uma relação com o corpo que permitia a sensação de continência e limite necessários para manter-se em equilíbrio com a realidade. O ato de dançar também era uma forma de escoar o excesso de energia, uma possibilidade de dar forma e expressão à tensão interior, propiciando um mínimo de organização. Quando o nível de tensão foi superior a este mínimo de organização, vimos o rompimento do equilíbrio.


ANALISANDO ALGUNS ELEMENTOS

A Persona
Podemos falar do “Cisne branco” como uma representação da persona de Nina, que intermedeia as relações dela com o meio exterior, protegendo o ego das exigências do meio. No caso de Nina, notamos uma adaptação dessa persona, pois existe a identificação com o papel e a função de bailarina, assim como a exigência pela perfeição. Nina é a personificação da bailarina: delicada, bela, meiga e passiva.

O Animus
É representado pelo diretor da companhia de balé – Thomas Leroy (Vincent Cassel). Analisando o nome “Leroy”, vemos o simbolismo inerente ao personagem: “Le Roi”, ou “o rei” em francês. Ele representa uma figura forte e poderosa, um Animus com capacidade de destruir ou elevar a personagem Nina. Leroy é uma figura ambígua. Parece querer tirar proveito de Nina, apresentando um potencial perigoso. Ao longo da trama, foca seu interesse em despertar em Nina o seu melhor desempenho. Em meio a um jogo de sedução, mostra a Nina que o que ela tem a fazer é aprender a seduzir, enquanto ele mesmo a seduz. 
           




A Sombra
Lily possui todas as características que Jung chama de sombra. Seu nome, “Lily”, remete a “Lilith”, primeira esposa mitológica de Adão. Aparece nas mitologias suméria, mesopotâmica, hebraica e grega evocando imagens de “demônio feminino”, feminilidade obscura, desinibição e sexualidade.

Nina se sente ameaçada por Lily, já que esta possui todos os requisitos necessários para desempenhar o papel do cisne negro. Lily exala sensualidade que lhe é própria, entrando em conflito com conteúdos que também habitam a alma de Nina, mas que são inconscientes e reprimidos com o auxílio do protecionismo da mãe dominadora.

Várias obras exploram a relação do indivíduo com sua sombra. É inevitável recordar o personagem Gregor Samsa, da obra “A Metamorfose” de Franz Kafka, quando acordou pela manhã e se viu metamorfoseado num inseto monstruoso. Nina também vive sua transformação dramática em meio à dança, ao belo e à dor, que culmina em um não reconhecimento de sua sombra e, consequentemente, em um quadro psicótico. 

A questão do duplo
O duplo aparece praticamente em todo o filme, sendo marcantes as questões mãe/filha, Nina/Lily, cisne branco/cisne negro, no entanto o duplo mais marcante refere-se ao lado pueril e doce de Nina, contrapondo com seus aspectos agressivos e sedutores, de forma que Nina passa a ter medo de sua própria sombra.


PRENÚNCIOS DA “CISÃO”

Nina é dominada pela figura materna, emocionalmente insegura e controlada pela mãe. Busca a perfeição que se reflete no controle excessivo da alimentação e do controle do corpo. A forma de contato mais íntimo com o corpo se dá por meio da automutilação por meio de arranhões. São impulsos que ela tenta conter: cortando e lixando suas “garras”.

Nina apresenta uma estrutura egóica frágil e evidente perfeccionismo, elementos que facilitam a ativação de uma constelação psicopatológica caracterizada por automutilação e alucinações visuais, auditivas e táteis. Neste momento percebemos a simbiose entre fantasia e realidade, assim como a simbiose entre mãe e filha.

Para desempenhar o papel de Cisne negro é necessário penetrar no lado sombrio. É preciso entrar em contato com a sombra e em tudo que nela habita. Estaria Nina preparada para esta jornada?


A DIFÍCIL TAREFA DO ENCONTRO COM A SOMBRA

A vida desafia Nina a encarar sua psique polarizada – a persona de menina frágil e sua sombra inconsciente-  mulher sedutora e agressiva.

O desafio, portanto, é que Nina possa ir de encontro à própria sombra. Quanto mais esta “fonte inesgotável” tornar-se consciente, menos ela irá dominar a personalidade de Nina. Se a sombra também é um depósito de energia instintiva, espontaneidade e vitalidade, fonte principal de nossa criatividade, a questão evocada é se a personagem conseguirá olhar para dentro de si e refletir honestamente sobre o Cisne negro que também habita sua alma.

Como a sombra é um arquétipo, seus conteúdos são carregados de afeto, agindo como entes autônomos  e capazes de dominar  o ego. Quando a consciência se vê em uma situação ameaçadora, a sombra se manifesta como uma projeção forte e irracional, positiva ou negativa, sobre o próximo. A projeção interna no meio externo pode ser observada pela presença de espelhos diante da protagonista em praticamente todo o filme. Chama muita a atenção a passagem em que Nina está diante de um espelho redondo, com vários outros ao seu redor. Remete a um “desdobramento”, uma cisão de sua imagem não apenas no sentido externo, mas também no interno.

Unindo os elementos de busca pela perfeição e tentativa de provar a si mesma e aos outros que é capaz de expor seu lado mais agressivo, a personagem não percebe que conteúdos inconscientes estão vindo a tona e, consequentemente, não percebe os limites entre sonho e realidade.  Esta “tempestade emocional” vivida pela protagonista envolvida pela música de Tchaikovsky é sentida também por nós, telespectadores, como um momento envolvente e dramático.  Estaria Nina sobrepondo sua vida ao enredo de “O Lago dos Cisnes”? 

De fato, a estrutura egóica frágil, associada ao controle materno e à emergente necessidade de confrontar-se com a sombra, desencadeia em Nina um surto psicótico em que, cada vez que ela se defronta com sua porção Odile, inconscientemente ela se pune por meio de mutilação física, apresentando alucinações auditivas, visuais e táteis (sentir plumas de cisne saindo de seu corpo). Em outro momento, Nina aparece lutando e matando Lily, sua rival, quando de fato estava agredindo a si mesma.


PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO OU CISÃO DO EGO?

Quanto ao “Processo de Individuação”, é necessária muita cautela ao aplicarmos este termo em relação ao filme em questão. Há vários artigos disponíveis na internet que falam sobre o filme, correlacionando-o ao Processo de Individuação e relatando como a personagem alcançou o ápice de seu processo. É indiscutível que Nina tenha vivenciado uma jornada difícil e altamente simbólica, mas como podemos falar em processo de Individuação quando o ego fragilizado sucumbiu à cisão e fora devorado pelos aspectos inconscientes e sombrios?

Segundo Von Franz (1964), “A individuação é definida como o processo pelo qual o ser humano pode tornar-se um indivíduo, uma totalidade, ou seja, representa a unicidade interna (síntese). É um processo arquetípico que permite o surgimento lento de uma personalidade cada vez mais ampla”.

A individuação implica, portanto, em decisões éticas e vontade. “É como se existisse uma predisposição ou acordo internos que facilitam a emergência dos conteúdos arquetípicos à consciência para sua posterior elaboração e assimilação. A ética na individuação consiste numa acurada observância do ego, aos sinais (símbolos) provenientes do Self, bem como em ser fiel a eles” (Gorresio, 1997).

No processo de Individuação o ego é confrontado tanto com a realidade interior quanto exterior. O desenvolvimento ocorre quando o ego tem força para suportar a tensão entre os opostos, de maneira a atingir um equilíbrio dinâmico entre as instâncias inconsciente/ consciente e mundo interior/ mundo exterior.  A fragilidade do ego dificulta e/ou impede que este desenvolvimento ocorra, sendo difícil suportar a tensão e consequentemente levando à ruptura com a realidade.

Desta forma, podemos dizer que houve uma cisão justamente por Nina não dispor de um ego estruturado capaz de encarar sua sombra e integra-la. Caso houvesse esta estruturação egóica, o desdobramento desta história com certeza seria outro e não se daria por meio da cisão, mas pela integração dos elementos inconscientes e conscientes, ou seja, o autêntico processo de Individuação.  Vamos sempre lembrar que, no Processo de Individuação, o Ego é elemento fundamental.

“O ego é a chave fundamental para o processo de individuação, já que é necessária uma colaboração ativa de um ego consciente e capaz de tomar decisões responsáveis” (Gorresio, 1997).

“É o ego que ilumina o sistema inteiro permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado”  (Von Franz, 1964, p. 162).


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


Não por acaso muitos críticos nomearam" Cisne Negro” como uma obra onírica onde grande parte do conflito acontece na mente da protagonista e não na realidade.

Nina buscou ajustar-se à vida, ver sentido nela. De certa forma buscava alcançar algum tipo de redenção. Ainda que tivesse sentido a "perfeição" por alguns instantes, ao mesmo tempo isso lhe custou a sanidade.

A vida vivida por Nina não se restringe ao cinema. Pode ser vivida em outras áreas artísticas, diferentes tipos de profissão e até mesmo em nosso cotidiano. A crescente necessidade de aceitação e principalmente de status tem sido cada vez mais marcantes em nossa sociedade. As frustrações são apenas parte das consequências em carregar nas costas o sonho alheio ou a auto exigência desmedia, como pode ser visto no filme.

"Cisne Negro"  vai além do impulso violento e destrutivo que se descortina em cada cena. É um estudo sobre a mente humana e cabe a nós refletir sobre nossos próprios cisnes


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GORRESIO, Z. M. P. A ética da individuação: um estudo sobre a ética do ponto de vista da psicologia junguiana. Hypnos, v. 2, n. 3, p. 112 – 118, 1997
VON FRANZ, M. L. O processo de individuação. In: JUNG, C. G. (org). O homem e seus símbolos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964

Alquimia

Fonte: Saindo da Matrix
Retirado do livro "C. G. Jung: Entrevistas e Encontros", de William McGuire e R.F.C. Hull (Ed. Cultrix)
Entrevista do Prof. Mircea Eliade com Jung, em 1952.
Eliade: Aos 77 anos de idade, o Professor C. G. Jung nada perdeu de sua extraordinária vitalidade, de seu surpreendente espírito juvenil. Ele acabou de publicar, um após outro, três novos livros: sobre o simbolismo de Aion(Tempo), sobre sincronicidade, e "Resposta a Jó", o qual já deu origem a reações sensacionais, especialmente entre os teólogos.
Jung: Esse livro sempre esteve em minha mente, mas aguardei 40 anos para escrevê-lo. Fiquei terrivelmente chocado quando, ainda criança, li o Livro de Jó pela primeira vez. Descobri que Javé é injusto, que é mesmo um malvado. Pois permite-se ser persuadido pelo diabo, concorda em torturar Jó por sugestão de Satã. Na onipotência de Javé não existe consideração pelo sofrimento humano. São abundantes os exemplos da injustiça de Javé em certos escritos hebraicos. Mas não é esse o ponto; o ponto que interessa é a reação do crente à injustiça. A questão é a seguinte: Existe na literatura rabínica qualquer prova da existência de reflexão crítica ou de uma reconciliação desse conflito na Deidade? Num texto tardio (Talmud babilônbico), Javé solicita a bênção do sumo sacerdote Ishmael, e Ishmael responde-lhe: "Seja a Tua vontade que a Tua misericórdia suprima a Tua ira, e que a Tua compaixão possa prevalecer sobre os Teus outros atributos..."
O Todo-Poderoso sente que um homem verdadeiramente santificado é superior a Ele.
É possível que tudo isso seja uma questão de linguagem. Pode ser que aquilo a que chamamos a "injustiça" e a "crueldade" de Javé sejam apenas fórmulas aproximadas e imperfeitas para expressar a transcendência total de Deus. Javé é "Aquele que é", de modo que está acima e além do bem e do mal. Ele é impossível de ser apreendido, compreendido, formulado; por conseguinte, é misericordioso e injusto simultaneamente. Isto é uma maneira de dizer que nenhuma definição pode circunscrever Deus, nenhum atributo esgota as suas potencialidades.
Eu falo como psicólogo e, sobretudo, estou falando do antropomorfismo de Javé e não de sua realidade teológica. Como psicólogo, digo que Javé é contraditório, e também penso que essa contradição pode ser interpretada psicologicamente. A fim de testar a fidelidade de Jó, Javé concede a Satã uma licença quase ilimitada. Ora, esse fato não está isento de conseqüências para a humanidade. Eventos muito importantes são iminentes no futuro por causa do papel que Javé se sentiu obrigado a atribuir a Satã. Diante da crueldade de Javé, Jó está silencioso. Esse silêncio é a mais bela e a mais nobre resposta que o homem pode dar a um Deus onipotente. O silêncio de Jó é já uma anunciação do Cristo. De fato, Deus fez-se homem, tornou-se Cristo, a fim de redimir a sua injustiça para com Jó.
Javé errou mas reconheceu o erro. Será Jó sabedor disso? De qualquer modo, a posteridade percebeu o conflito doloroso causado pela imoralidade de Javé. Há a história de um sábio muito piedoso e devoto que não suportava ler o Salmo 89. Jó está certamente consciente da injustiça divina e, assim, está mais consciente do que Javé. É a superioridade sutil do progresso do homem em consciência moral, em face de um Deus menos consciente. Essa é a razão para a Encarnação.
O grande problema em psicologia é a integração de opostos. Encontramo-lo em toda a parte e em todos os níveis. Em Psicologia e Alquimia tive ocasião de me interessar pela integração de Satã. Pois enquanto Satã não for integrado, não haverá cura para o mundo nem salvação para o homem. Mas Satã representa o mal - e como pode o mal ser integrado? Só existe uma possibilidade: assimilá-lo, ou seja, elevá-lo ao nível da consciência. Isso é feito mediante um processo simbólico muito complicado, o qual é mais ou menos idêntico ao processo psicológico de individuação. Em alquimia, chama-se a conjunção dos dois princípios. De fato, a alquimia assumiu e levou por diante a obra do cristianismo. Na concepção alquimista, o cristianismo salvou o homem, mas não a natureza. O sonho do alquimista era salvar o mundo em sua totalidade; a pedra filosofal foi concebida como o filius macrocosmi, o que salva o mundo, ao passo que o Cristo era o filius microcosmi, o salvador apenas do homem. A finalidade suprema do opus alquímico é a apokatastasis, a salvação cósmica.
Estudei alquimia durante 15 anos, mas nunca falei sobre isso a ninguém; não desejava influenciar os meus pacientes ou meus colegas de trabalho por sugestão. Mas, após 15 anos de pesquisa e observação, impuseram-se-me conclusões inelutáveis. As operações alquímicas eram reais, só que essa realidade não era física mas psicológica. A alquimia representa a projeção de um drama cósmico e espiritual em termos de laboratório. O opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmo. Aquilo a que o alquimista chamava "matéria" era, na realidade, o eu (inconsciente). A "alma do mundo" (anima mundi), que foi identificada com o spiritus mercurius, estava aprisionada na "matéria". Por essa razão é que o alquimista acreditava na verdade da "matéria", porquanto a "matéria" era, na realidade, a própria vida psíquica do alquimista. Mas era uma questão de libertar essa "matéria", de salvá-la - numa palavra, de descobrir a pedra filosofal, o corpus glorificationis.
Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; o opus alquímico é perigoso. Logo no começo encontramos o "dragão", o espírito ctônico, o "diabo" ou, como os alquimistas lhe chamavam, a "escuridade", o nigredo, e esse encontro produz sofrimento. A "matéria" sofre até ao desaparecimento final da escuridade; em termos psicológicos, a alma encontra-se nas vascas da melancolia e da angústia travando uma luta com a "sombra". O mistério da conjunção (coniunctio), o mistério central da alquimia, visa precisamente a síntese dos opostos, a assimilação da escuridade, a integração do diabo. Para o cristão "despertado" isso constitui uma experiência psíquica muito séria, pois trata-se de um confronto com a sua própria "sombra", com a escuridade, o nigredo, que permanece à parte e nunca pode ser completamente integrado na personalidade humana.
Ao interpretar-se o confronto do cristão com sua sombra em termos psicológicos, descobre-se o medo oculto de que o diabo seja mais forte, de que Cristo não tenha conseguido conquistá-lo completamente. Caso contrário, por que se acreditava e ainda se acredita no Anticristo? Por que se aguardava e continua se aguardando a vinda do Anticristo? Porque só depois do reino do Anticristo e só depois do segundo advento do Cristo o mal será finalmente conquistado no mundo e na alma humana. Em nível psicológico, todos esses símbolos e crenças são interdependentes; é sempre uma questão de lutar com o diabo, com Satã, e de conquistá-lo, ou seja, de assimilá-lo, integrando-o na consciência. Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até que o nigredo desapareça, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) eum novo dia nascerá, o leukosis ou albedo. Mas nesse estado de "brancura" não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas chamam o rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal do albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de escuridade é dissolvido, em que o diabo deixa de ter uma existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, o opus magnumestá concluído: a alma humana está completamente integrada.
Eu sou e continuo sendo um psicólogo. Não estou interessado em qualquer coisa que transcenda o conteúdo psicológico da experiência humana. Nem sequer pergunto a mim mesmo se tal transcendência é possível, visto que, em qualquer caso, o transpsicológico tampouco é de interesse para o psicólogo. Mas no nível psicológico tenho que ocupar-me das experiências religiosas que possuem uma estrutura e um simbolismo que pode ser interpretado. Para mim, a experiência religiosa é real, é verdadeira. Apurei que, através de tais experiências religiosas, a alma pode ser "salva", a sua integração acelerada, e estabelecido o equilíbrio espiritual. Para mim, como psicólogo, o estado de graça existe: é a perfeita serenidade da alma, um equilíbrio criativo, a fonte de energia espiritual. Falando sempre como psicólogo, afirmo que a presença de Deus é manifesta, na experiência profunda da psique, como uma coincidentia oppositorum, e toda a história da religião, todas as teologias, dão testemunho do fato de que a coincidentia oppositorum é uma das mais comuns e mais arcaicas fórmulas para expressar a realidade de Deus. A experiência religiosa é numinosa, como Rudolf Otto a designa, e, para mim, como psicólogo, essa experiência difere de todas as outras de um modo que transcende as categorias ordinárias de espaço, tempo e causalidade. Recentemente, empenhei-me no estudo da sincronicidade (em poucas palavras, a "ruptura do tempo"), e estabeleci que se assemelha estreitamente às experiências numinosas em que espaço, tempo e causalidade são abolidas. Não aplico qualquer juízo de valor à experiência religiosa. Afirmo que um conflito interno é sempre a fonte de profundas e perigosas crises psicológicas, tão perigosas que podem destruir a integridade de um homem. Esse conflito interno manifesta-se psicologicamente nas mesmas imagens e no mesmo simbolismo testemunhados por toda e qualquer religião no mundo, e utilizados também pelos alquimistas.
Por isso me interessei pela religião, por Javé, Satã, Cristo, pela Virgem. Entendo muito bem que um crente veja algo muito diferente nessas imagens do que eu, como psicólogo, tenho o direito de ver. A fé de um crente é uma grande força espiritual, é a garantia de sua integridade psíquica. Mas eu sou médico e estou interessado em curar os meus semelhantes. A fé e somente a fé já não tem poder - infelizmente! - para curar certas pessoas. O mundo moderno está dessacralizado; por isso está em crise. O homem moderno deve redescobrir uma fonte mais profunda de sua própria vida espiritual. Para tanto, é obrigado a lutar com o diabo, a enfrentar sua própria sombra, a integrar o diabo. Não há outra escolha. É por isso que Javé, Jó, Satã, representam situações psicologicamente exemplares; eles são como paradigmas do eterno drama humano.

Eliade: Jung descobriu o inconsciente coletivo - quer dizer, tudo o que precede a história pessoal do ser humano - e aplicou-se a decifrar as suas estruturas e a sua "dialética", com vistas a facilitar a reconciliação do homem com a parte inconsciente de sua vida psíquica e a conduzi-lo no sentido da integração de sua personalidade. Ao invés de Freud, Jung toma em consideração a história: os arquétipos, essas estruturas do inconsciente coletivo, estão carregados de história. Já não é uma questão, como quer Freud, de uma "espontaneidade natural" do inconsciente de cada indivíduo, mas de um imenso reservatório de lembranças históricas, uma memória coletiva na qual é preservada, em essência, a história de toda a humanidade. Jung acredita que o homem deve fazer maior uso desse reservatório; o seu método analítico dedica-se, precisamente, a encontrar os meios adequados para usá-lo.
Jung: O inconsciente coletivo é mais perigoso do que dinamite, mas existem métodos para manipulá-lo sem maiores riscos. Depois, quando se desencadeia uma crise psicológica, estamos em melhor posição do que qualquer outro para resolvê-la. Temos sonhos e devaneios; tratemos de os observar. Poderíamos quase dizer que todo o sonho, à sua própria maneira, contém uma mensagem. Ela não só nos diz que algo está errado nas profundidades do nosso ser, mas também nos oferece uma solução para sair da crise. Pois o inconsciente coletivo que nos envia esses sonhos já possui a solução: nada se perdeu da toda a experiência imemorial da humanidade, toda a situação imaginável e toda a solução parecem ter sido previstas pelo inconsciente coletivo. Basta apenas que observemos cuidadosamente. A análise ajuda a ler corretamente essas mensagens.

Eliade: Foi observando seus próprios sonhos - que ele tentou em vão interpretar nos termos da psicanálise freudiana - que Jung foi levado a pressupor a existência do inconsciente coletivo. Isso aconteceu em 1909. Dois anos depois, começou a dar-se conta da importância de sua descoberta. Finalmente, em 1914, ainda em conseqüência de uma série de sonhos e devaneios, ele compreendeu que as manifestações do inconsciente coletivo são, em parte, independentes das leis do tempo e da causalidade. Como o Professor Jung amavelmente me permitiu que falasse desses sonhos e devaneios, os quais desempenharam um papel capital em sua carreira científica, eis um resumo deles.
Jung: Em outubro de 1913, enquanto viajava de trem de Zurique para Schaffhausen, ocorreu-me um estranho incidente. Ao atravessar um túnel, perdi a consciência de tempo e lugar, e só fui acordado uma hora depois, quando o condutor anunciou a chegada a Schaffhausen. Durante todo esse tempo fui vítima de uma alucinação, de um devaneio. Estava olhando para o mapa da Europa e vi como, país por país, começando com a França e a Alemanha, a Europa era tragada pelo mar, até ficar submersa. Pouco depois, todo o continente era um lençol de água, com exceção da Suíça; a Suíça era como uma alta montanha que as ondas não podiam alcançar. Vi-me sentado na montanha. Mas então, olhando mais atentamente à minha volta, percebi que o mar não era de água, mas de sangue. Flutuando sobre as ondas havia cadáveres, telhados de casas, madeiras calcinadas.
Três meses mais tarde, em dezembro de 1913, e novamente no trem que me levava a Schaffhausen, repetiu-se o mesmo devaneio, de novo ao entrar no túnel (Dei-me conta, subseqüentemente, de que era como uma imersão no inconsciente coletivo). Como psiquiatra, fiquei preocupado, imaginando se eu não estaria a caminho de "fazer uma esquizofrenia", como dizíamos na linguagem desses tempos. Finalmente, alguns meses mais tarde, tive o seguinte sonho: Vi-me nos mares do sul, perto de Sumatra, no verão, acompanhado de um amigo. Mas soubemos pelos jornais que uma terrível onda de frio tinha varrido a Europa, como não havia notícia de que tivesse ocorrido antes. Decidi ir até Batávia e embarcar num navio de volta à Europa. O meu amigo disse-me que pegaria um veleiro de Sumatra para Hadramaut, e daí continuaria sua viagem através da Arábia e Turquia. Cheguei à Suíça. Em meu redor só via neve e mais neve. Uma vinha enorme estava crescendo algures; tinha muitos cachos de uvas. Acerquei-me e comecei apanhando as uvas, distribuindo-as por um magote de gente que me rodeava mas que eu não podia ver.
Três vezes esse sonho se repetiu e, finalmente, fiquei deveras intranqüilo. Eu estava justamente nessa época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: "Estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso teria lugar em julho de 1914 - exatamente o período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos.

Eliade: Jung ficou satisfeito ao receber uma segunda explicação desse sonho pouco depois. Os jornais não tardaram em noticiar que um capitão da Marinha alemã, de nome von Mücke, que tinha cruzado os mares do sul num veleiro, de Sumatra para Hadramaut, se refugiara na Arábia e daí alcançara a Turquia.