quarta-feira, 15 de junho de 2011

Estrutura psíquica do ser humano - Visão Oriental



Na literatura sânscrita do Yôga não há um termo que traduza literalmente o sentido da palavra "inconsciente", porém, nela aparecem muitos termos que só podem ser compreendidos supondo-se uma concepção de inconsciente. Poderíamos sem exagero dizer que o inconsciente é uma invenção hindu, basta vermos a importância que possui no Yôga seus termos similares.
1.1 Samskára (impressões)
Os processos mentais (chittavritti) deixam na mente impressões subconscientes, que Pátañjali chama de samskára. Estas impressões permanecem na mente de modo latente, influenciando a vida psíquica, são o que o Yôga chama também de "sementes" (bíja), que produzem "tendências" (vásana), novos pensamentos, redemoinhos mentais (vrittis). Cabe ao praticante de Yôga impedir o surgimento dos samskára e destruir as impressões e tendências que buscam atualização.
Quando uma tendência ou impressão se atualiza, transforma-se em hábito e se aprofunda como samskára. Se tal hábito não é superado, suprimido ou sublimado, ele se transformará em vício, implicará pelo menos a dependência psíquica e a compulsão ao ato repetitivo. Por exemplo: se alguém experimenta um cafezinho num intervalo de trabalho, tendo isto como algo agradável, tenderá a repetir a experiência em todos os intervalos de trabalho, e se sentirá necessitado de um café no dia em que tal atualização não for possível.
Para Pátañjali samskára é o mesmo que memória, já que sem memória não permaneceria na mente impressão alguma, e tampouco haveria desejo de reprisar qualquer ato que fosse.
1.2 Vásana (tendências)
O termo sânscrito vásana também é usado por Pátañjali num sentido quase igual ao de samskára. Podemos traduzir vásana como tendência latente ou impulso. A diferença sutil entre samskára e vásana é que o primeiro tem uma conotação estática de impressão, registro, enquanto que o segundo seria a faceta dinâmica da impressão, ou seja, sua manifestação como tendência, desejo, pulsão. Escreve Feuerstein:
"Os samskára de um mesmo tipo combinam-se para formar configurações ou 'rastros' (vásana) na mente profunda."
Quase ninguém faz tal distinção, pois ambos aparecem juntos e no fundo são a mesma coisa. Mircea Eliade escreve:
"A vida é uma contínua descarga de vásanas que se manifestal nos vrittis. Psicologicamente, a existência humana é uma incessante atualização do subconsciente, mediante 'experiências'. Os vásanas condicionam o caráter específico de cada indivíduo; tal condicionamento está de acordo com a herança e com a situação kármica do indivíduo."
Isto significa de um lado que o reconhecimento da ilusão por si só não liberta o homem, pois segundo o Yôga, nele os vásanas continuarão atuando. De outro lado sabemos que os vrittis podem ser com kleshas ou sem kleshas, e que o termo klesha pode ser traduzido como "mancha", "impureza". Daí que o conceito de vásana está bastante próximo da psicanálise freudiana, pois as tendências aparecem como desejos. Pulsões impuras do inconsciente e desejos inconfessáveis do "id" são quase o mesmo. O impulso inconsciente quer se tornar consciência, o desejo quer se realizar e repousar.
No Yôga os impulsos inconscientes possuem uma dimensão muito ampla, pois estão associados à idéia do karma. São as ações que cobram suas conseqüências num circuito de causa e efeito, em que os atos se registram como expressões de experiências agradáveis ou desagradáveis, em que as impressões se transformam em tendências que, ao se atualizarem na consciência, conduzem irremediavelmente e de novo ao ato. Este círculo é rompido quando o espírito (Purusha) deixa de ser arrastado pela matéria (Prakrití); a ignorância se desfaz quando o yôgi adquire o discernimento e faz uso das técnicas do Yôga. Escreve Pátañjali:
"Hetu-phálashrayálambanaih samgrihítatvád eshám abháve tad-abhávah"."Estando interligados (samgrihitatvád) como causa-efeito, substrato-objeto (ashraya = apoio, suporte, 'substrato'; alambanaih = objeto), os efeitos desaparecem (abhávah) quando a causa desaparece (abháve)".Y. S. - IV, 11
Demonstra o Yôga que os samskáras e vásanas são grandes obstáculos à iluminação, o inconsciente se opõe à ascese, por isso se impõe seu necessário domínio e conscientização. Há também o medo, pois as pulsões inconscientes temem não se atualizarem, e o ego teme sucumbir às forças totalizadoras do inconsciente.
A satisfação dos desejos e a manifestação de formas são impulsos egóicos de exteriorização, mas realizar um desejo é esgotá-lo, e a plenitude de ser das formas está na consumação das mesmas. Donde se fala de uma ânsia de não ser, as tendências kármicas querem todas se auto-destruir, satisfazer-se. Todo o universo material (Prakrití) caminha em direção ao repouso, à reabsorção numa unidade original.

Extraído do livro Yôga e Consciência, de HENRIQUES, Antônio Renato. Pág. 84-87. 2a. ed. Ed. Rígel. São Paulo, 1984

Apego à vida (Abhivesha)
Abhinivesha é o forte desejo de viver, que ‘se mantém por sua própria natureza’ (svarasaváhi= pelas próprias forças), e que domina (rúdhah) até mesmo os ‘sábios’ (vidushah = instruídos)”. (Yoga Sutra de Patãnjali – 11,9)
             Como já é lugar comum em filosofia, a única certeza da vida é a morte. O homem é um ser-para-morte. E todos nós temos medo de morrer. A morte assusta por dois lados: pelo desconhecido que ela representa em si, e pelo esvaziamento que ela produz na vida. A morte significa o ingresso no não-ser, tomando o ser como a atual circunstância do que somos e que nos cerca. Mas a morte assim também significa o abandono do ser, este rompimento com a existência.
O instinto de sobrevivência é o mais poderoso, todos estamos apegados à vida, temos medo de não-ser. Mesmo a supressão dos pensamentos (vrittis) a que se propõe o Yoga, relaciona-se a tal medo. Nós estamos sempre pensando coisas pelo simples medo de deixar de ser, porque o ego é nada mais que a sensação de continuidade que existe em nosso fluxo mental, o eu pensante cartesiano deveria ser entendido de outra maneira. Se nós pensamos, o ato de pensar existe. No entanto, o eu existirá só se este ato de pensar for contínuo. Mas nós sabemos que o que a criança que nós fomos pensava, nada tem a ver com o que o adulto que hoje somos pensa, a não ser uma linha de continuidade ligando aqueles pensamentos a estes. Porém, entre um pensamento e outro existe um intervalo de silêncio. Este silêncio deve ser fixado e alargado, e ele é não-eu, descontinuidade, não-pensar, mas existe. Ou seja: "penso, logo, existo", não como "aquilo que pensa" mas como processo pensante, "aquilo" não pensa. "Aquilo" (Tat) é o Si que brota quando os pensamentos (vrittis) estão suprimidos, quando o pensamento como ato cessa. E isto é morrer comoego sem deixar de existir. Por isso se pode falar de uma experiência da morte em vida.
No ocidente fala-se que a experiência da morte em vida se dá na morte do outro e, principalmente, na morte do "irmão". Porém, que são os outros para nós senão partes de nós? Em verdade, sempre choramos pela nossa própria morte, tomada aqui como rompimento com a dimensão do nosso ser, vinculado e dependente do próximo, recém-finado. Mas a experiência de morte em vida, de que trata o Yoga, é mais radical, não é apenas a perda de um pedaço, não é uma mutilação. Equivale realmente à perda de um todo, em que uma estrutura de ego se desfaz completamente. A iluminação equivale à morte, a palavra samádhi tem, a partir de sua raiz, também o significado de "morto". O guru nasce da morte do discípulo, assim como também o discípulo nasceu da morte do homem profano.
Entretanto, diz Pátañjali, que o apego à vida assola até os mais sábios, nem o guru escapa de vacilar diante da morte. Isto porque um ser realizado possui latentes todas as fontes de sofrimento (kleshas), seu ego não mais atua de modo dominante, por não estar mais no centro, mas ainda existe. E existirá enquanto houver um corpo humano vivo ocupando um certo lugar no mundo. Não é fácil nascer - e que é a morte senão um segundo nascimento? É preciso coragem para, voluntariamente, cortarmos o cordão umbilical com o mundo.
E quando escrevemos isto, não estamos falando dos suicidas, porque quem se mata, assim o faz pelo mundo. O ego, a frustração, o desespero e a depressão profunda conduzem o suicida à morte, à loucura do crime, ao patológico de uma auto-agressão. Mas, paradoxalmente, o suicida é quem mais quer viver, e está apegado ao mundo. Cortar voluntariamente o cordão umbilical com o mundo é "entregar o espírito" e não o corpo, é marchar seguro ao encontro do novo, e não ceder ao desespero do velho.
O Yoga não é uma filosofia niilista, apesar de o apego à vida ser nela tomado como algo a ser superado. Pensamos que toda a filosofia deveria ser uma preparação (não mórbida) para a morte. E que é saber morrer, senão viver no sentido mais pleno? Quem tiver amado a vida e encarado a existência com sabedoria, não terá medo da morte, porque a morte é a outra face da vida, e quem conhece e ama uma face intuirá a unidade de ambas, e não fugirá da totalidade. Quem se converte em luz, não terá jamais medo de mergulhar no escuro.